sexta-feira, 9 de abril de 2010

Notícias de Lá

("Meu caro amigo eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa" Chico)

Amigas psicólogas e demais colegas da rede:

Uma semana (um pouco mais) após minha participação no XXVIII Encontro Anual Helena Antipoff – “Psicologia, Psicanálise e Educação na Cultura Contemporânea”, realizado na Faculdade de Educação - UFMG, nos dias 29 a 31/03/2010, trago algumas observações. Embora os mais próximos já tenham ouvido alguns comentários, sigo também a orientação de compartilhar com toda a rede, uma vez que se trata de questões pertinentes à nossa educação.

História, Pesquisa, Prática e Teoria. São pontos que resumem bem o que foi exposto nos três dias de encontro e que, não por acaso, orientam as interlocuções entre os saberes discutidos. Trago aqui, para ilustrar o efeito produzido no Encontro, alguns aspectos de três trabalhos de níveis diferentes. Uma conferência, uma exposição de mesa redonda e outra de sessões coordenadas menores.

A primeira delas, também primeira do evento, realizada por Wade Pickren, da Ryerson University (Canadá), com o nome de “Waters of March: circulating Knowledge, transforming psycological science and practice”. O pesquisador defende que é necessária uma maior troca de conhecimentos e práticas, criando-se pólos de produção, o que condiz com a contemporaneidade globalizada. O modelo “centro-periferia”, apoiado na perspectiva colonizadora de dominação não deveria ter mais lugar na sociedade. Exemplo citado por ele é a entrada da Psicanálise e Psicologia na Índia a partir do discurso dos Estados Unidos. Após certa dominação seguiu-se um período em que os nativos não rejeitaram o saber imposto, contudo, perceberam que ele nem sempre era válido, principalmente para o contexto local. A resistência seguida de produção de conhecimento foi o movimento de reação. Os saberes e práticas precisaram ser modificados e adaptados à realidade Indiana.

Apesar dos exemplos e da visível dominação dos EUA sobre o Brasil (além de outros países emergentes) Wade acredita que um “Policentro” de produção e trocas é possível no Brasil. Um último exemplo fica por conta do título escolhido para a conferência. Ora, o sem-sentido da língua portuguesa passa a significar algo além para o norte-americano quando ouve, na versão de jazz, a música de Tom Jobim.

Silvia Parrat-Dayan, professora da Universidade de Genebra (Suiça) é uma das participantes da mesa redonda “Abordagem Psicogenética em Psicologia e Educação”. Sua fala é fundamental para desconstruir mal-entendidos fortemente enraizados na prática educativa brasileira, no que concerne ao pensamento Piagetiano. É conhecido por muitos que o desejo de Piaget sobre a educação é de que esta faça seres humanos criativos e autônomos. Entretanto, algumas coisas devem ser mais bem entendidas para que a noção construtivista não permaneça tão mal interpretada nas escolas.

Parrat-Dayan indica que, diferente do que preconizava Piaget, a Pedagogia ficou bastante dependente do conhecimento da Psicologia, preocupando-se em aplicar técnicas de maneira prescritiva em vez de construir um fazer e um ensinar a partir da observação dos alunos. A pesquisadora salienta também que a formação de professores foi marcada pelo ensino da fase Estruturalista de Piaget. Como resultado, os professores se preocuparam mais com fases de desenvolvimento e técnicas (utilizadas com caráter avaliativo). Não é demais lembrar que o Sujeito que importa para Piaget na educação é o sujeito epistêmico. Este independe de fases. O período Funcionalista de Piaget, anterior a esta citada e também retomada nos estudos finais, tem ficado em segundo plano. Contudo é exatamente sob a orientação Funcionalista que Piaget trouxe as maiores contribuições à educação. Questiona-se, portanto, o que foi ensinado de Piaget e, disto, o que foi aprendido? Ademais, o que é produzido nas escolas? Ora, a crença da inadequação do construtivismo piagetiano não passa de uma transmissão falha e da reprodução de erros epistêmico-metodológicos.

A outra observação se refere a uma sessão coordenada na qual foram abordadas pesquisas acerca das problemáticas que envolvem a escola. Destaco uma delas que se refere à prática da Psicologia, trazida pelo professor Lincoln Martins, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, com o título de “Cultura Escolar e Indisciplina”. Trata-se de uma solicitação da escola por uma intervenção que viesse a minimizar os episódios de indisciplina. A primeira observação se refere a demanda: É preciso desconfiar dela. Não esta seja uma inverdade por parte de quem a solicita. Antes disto, ela comporta sempre um mal entendido que, se for levado ao pé da letra, pode limitar o olhar para os fenômenos isolados. Uma maneira mais operativa de lidar com as demandas é, de acordo com Lincoln, afastar o olhar do fenômeno e expandir para o sistema, ou seja, a escola como um todo. Por mais que o sintoma se manifeste pelo comportamento dito inadequado do aluno, pode-se entender que todo o sistema está implicado na formação deste sintoma. Assim, a questão fundamental é a relação entre a cultura organizacional da escola e a indisciplina discente. Isto significa que a intervenção não precisa ser feita necessariamente sobre o aluno.

Foi precisamente desta forma que ocorreu a intervenção relatada por Lincoln. A escola que, no início, queixava-se dos alunos, passou por uma retificação ao ponto de trabalhar as questões internas e relações do grupo ao passo que os alunos passaram a não ser sequer citados nas queixas. Não é sem dificuldades que o trabalho ocorre, há que se ressaltar. Nos primeiros momentos, a resistência dos professores era grande e se baseava em questões pontuais: O psicólogo está a serviço de quem? Da escola, dos diretores, da secretaria de educação? Indo mais fundo na questão, percebe-se o medo de que o psicólogo esteja “do lado” de alguma destas partes. A intervenção, quando bem sucedida, consegue mostrar logo que obviamente não se trata disto.

Pois bem. Expus aqui as observações de apenas uma parte de um encontro de três dias bastante produtivos. Embora não digam sobre todas as abordagens apresentadas, trazem um panorama interessante e um ponto comum de reflexão. A que nos propomos quando unimos práticas e saberes das psicologias e da educação?

Ora, que a formação educativa do brasileiro atualmente é falha em todos os níveis, não há a menor dúvida. E não basta se basear em dados quantitativos de provas para isto. Eles podem mascarar a realidade para o bem ou para o mal. Mas é na vastidão de produções do campo científico que se percebe, seja pela divulgação escrita, seja por encontros, congressos, etc., que algo pulsa por mudança.

Do que foi descrito aqui, o estudo e transmissão do pensamento piagetiano é um grande exemplo das falhas que vão desde a formação docente até o ensino em nível fundamental. Uma vez que a verticalização do ensino ainda é a regra geral, as possibilidades de troca são extremamente reduzidas. Não foi disto que Wade Pickern falou ao criticar o modelo “centro-periferia”? Uma relação mais polarizada, de circulação horizontal, permite não só trocas mais efetivas como a produção de saberes interligados à realidade local.

*Neste contexto, insere-se a nossa função. Pois, como psicólogos, é onde atuamos: No sistema, seja onde for que o sintoma se manifeste. Ainda que, a rigor, em nosso caso seja impossível estar totalmente fora do ‘macro-sistema’, certo afastamento dos ‘micro-sistemas’ é necessário. Para que o objeto de trabalho seja de fato as relações nas quais não estamos diretamente envolvidos. Encontramo-nos, portanto, em uma posição em que, apesar das disputas de poder, não estamos de lado nenhum. Propomos polarizações (parcerias) para as múltiplas formas de saber e fazer.


Gustavo Martins

*Parágrafo inserido após a escrita do relatório (o restante do texto).